Há mais de
400 anos, William Shakespeare tratou da “doença da suspeita” em uma de suas
obras mais populares: Otelo, o mouro de Veneza. A desconfiança de que a mulher
mantinha relacionamento com um rapaz mais jovem – despertada e alimentada por
insinuações de um subordinado, Iago – levou-o a buscar e a acreditar ter
encontrado provas da traição em fatos triviais. O escritor referia-se ao ciúme
como “o monstro de olhos verdes”, uma metáfora sobre a cegueira induzida pelo
sentimento que faz entrever como provável ou certo o que apenas é possível de
acontecer.
No
relacionamento amoroso, no entanto, é natural sentir ansiedade ao perceber que
algo ou alguém pode reduzir o espaço afetivo que ocupamos na vida do parceiro.
“O ciúme normal é transitório e se baseia em ameaças e fatos reais. Ele não
limita as atividades – nem interfere nelas – de quem sente ou é alvo de ciúme e
tende a desaparecer diante das evidências”, define a psicóloga Andrea Lorena,
pesquisadora de ciúme excessivo do Laboratório Integrado dos Transtornos do
Impulso (PRO-AMITI) do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo
(USP). O ciúme extrapola as fronteiras do saudável quando se torna uma
preocupação constante e geralmente infundada, associada a comportamentos
inaceitáveis ou extravagantes, motivados pela ansiedade de tirar a limpo a infidelidade
do parceiro. “No ciúme excessivo, o medo de perder a pessoa amada vem
acompanhado de emoções específicas – raiva, medo, tristeza, ansiedade – e
pensamentos irracionais. ‘Será que ele/ela está me traindo?’ é um pensamento
frequente. Quase sempre há prejuízos para quem sente, para quem é alvo e para o
relacionamento”, diz Andrea.
Não raro os
pensamentos irracionais se traduzem em comportamentos compulsivos, sustentados
pela ilusão de que é possível controlar o que o parceiro faz ou sente, como verificar
agendas, registro de ligações no celular, seguir o parceiro, conseguir senha de
acesso ao e-mail, checar faturas de cartão de crédito e fazer visitas-surpresa
para confirmar suspeitas. Muitas vezes as preocupações são acompanhadas por
sintomas físicos, como sudorese, taquicardia, alterações no apetite e insônia.
De acordo com Andrea, uma das características mais comuns da pessoa
excessivamente ciumenta é a baixa autoestima. “Isto é, ela não acredita que tem
valor e merece respeito. A priori, é alguém ‘traível’ e abandonável, pois na
verdade acredita que a honestidade e a reciprocidade nas relações não valem a
pena. É um sentimento com origem na infância e na relação com os pais, em que
provavelmente a pessoa foi negligenciada e desrespeitada. Somam-se ainda
fatores como insegurança, medo, instabilidade e a própria desorganização
pessoal”, diz a psicóloga.
No Brasil, o
PRO-AMITI e a Santa Casa do Rio de Janeiro oferecem tratamento gratuito para
ciúme excessivo. A abordagem combina atendimento psicológico, em grupo ou
individual, e psiquiátrico. É comum a comorbidade com transtornos de depressão
e ansiedade que, se diagnosticados, são tratados com medicamentos. “O processo
psicoterápico trabalha a melhora da autoestima e a segurança com o próprio relacionamento.
Com o tempo, o paciente percebe que comportamentos como investigar o que o
parceiro faz na rede ou vasculhar seus pertences são desnecessários”, diz
Andrea.
O ciúme
excessivo é um traço frequente de outro quadro: o amor patológico (AP), com características
semelhantes à dependência química. Ele ocorre quando o comportamento saudável
de atenção e cuidado para com o parceiro, característico do amor, começa a
ocorrer de maneira repetitiva e frequente. A pessoa se ocupa do outro mais do
que gostaria e abandona interesses e atividades que antes valorizava. Segundo a
psicóloga Eglacy Sophia, também do PRO-AMITI, ciúme excessivo e amor patológico
compreendem medo intenso da perda, baixa autoestima e insegurança emocional.
“Muitas vezes os questionamentos sobre a fidelidade do parceiro são calcados em
motivos plausíveis. Em geral, uma entrevista cuidadosa com o paciente revela
dados sobre o comportamento do parceiro que poderiam causar ciúme em qualquer
pessoa, como telefonemas secretos, distanciamento afetivo e físico frequente e
confirmação de traições passadas”, diz a psicóloga.
Apesar de
existirem poucos estudos relacionando o ciúme patológico com o transtorno
obsessivo-compulsivo (TOC), os pensamentos do ciumento costumam ser similares
aos das pessoas que têm o distúrbio: são intrusivos, desagradáveis e incitam
atitudes de verificação. “Pacientes que reconhecem seus comportamentos como
inadequados ou injustificados apresentam mais sentimentos de culpa e depressão;
os demais demonstram raiva e condutas impulsivas mais pronunciadas”, diz
Eglacy.
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