Em 1999, não recordo a data exata,
iniciei o projeto de ler a Bíblia na íntegra. Desde então, e
sempre que possível, dedico uma parte da noite para a leitura,
reflexão e anotações. Leio sem pressa, como quem espera ser
agraciado com a dádiva da vida no dia seguinte. “A senhora
insensatez é impulsiva, é ingênua e nada conhece” (Pr 9,13).
Pensando bem, talvez seja insensato acreditar no dia seguinte, pois o
tempo não nos pertence. Mas basta a certeza da finitude, não é
necessário se atormentar com a iminência da morte. Ela tem o seu
próprio tempo. “Há um momento para tudo e um tempo para todo
propósito debaixo do céu. Tempo de nascer, e de tempo de morrer;
tempo de plantar, e tempo de arrancar a planta” (Ecl 3, 1-2).
Morrer é da natureza intrínseca dos seres vivos; é da condição
humana e, nisto, somos iguais aos animais em geral. “Pois a sorte
do homem e do animal é idêntica: como morre um, assim morre o
outro, e ambos têm o mesmo alento; o homem não leva vantagem sobre
o animal, porque tudo é vaidade” (Ecl 3, 19). Assim, talvez seja
uma doce ilusão acreditar no amanhã, mas é agradável viver com a
esperança da aurora que anuncia o recomeço do ciclo da vida.
Na juventude, eu li a Bíblia. Embora
comungasse sinceramente a sua mensagem religiosa e espiritual,
tratava-se de uma leitura orientada pelo viés político-religioso da
Teologia da Libertação. A Bíblia era o nosso livro vermelho. Como
escrevi em outro momento, a leitura da Bíblia dava-me respostas
diante das injustiças sociais que sentia e via ao meu redor e
reforçava a minha esperança utópica por uma sociedade justa e
igualitária. Naquela época, porém, não a li na íntegra nem
sequencialmente, mas sim trechos propensos à reflexão social e
política – ainda que assimilados religiosamente. Mesmo quando,
tempos atrás, retomei a leitura bíblica, não havia o propósito de
ler integramente, mas apenas os Livros Poéticos e Sapienciais –
que reli recentemente. No momento, iniciei a leitura dos Livros
Proféticos.
Em respeito ao leitor, admito que não
leio a Bíblia com o ardor religioso dos que consideram cada palavra
inscrita como a revelação divina e conferem à mesma o caráter de
obra sagrada. Pelo contrário, embora respeite os que creem, admire a
fé e até me esforce para compreender, a minha perspectiva é
racionalista. Compreender não significa aceitar. A cada palavra que
leio, página e livro que concluo a leitura, mais me convenço do
Credo quia absurdum. Ainda assim, continuo a ler e a refletir…
“Por que ler a Bíblia?”, questiona
o superego. “A Bíblia deve ser lida com o coração, com o
sentimento”. O meu superego nutre uma religiosidade profunda e, por
mais que se esforce, não compreende a minha dedicação racional à
leitura bíblica. Ainda que não pronuncie, julga-me sacrílego. No
fundo, porém, alegra-se ao ver-me debruçado sobre o livro sagrado;
nutre a esperança de que suas palavras me toquem, falem ao meu
coração. Eu o compreendo! Meu superego deseja o melhor, acredita na
conversão e ora por mim. Ele almeja a minha salvação. Sua crença
me sensibiliza e entristece-me decepcioná-lo. Não obstante, por
mais que admire sua fé, receio a leitura quase que fundamentalista
que tenta me impingir. Ainda assim, procuro compreendê-lo.
Talvez esta seja a resposta ao
questionamento. A leitura bíblica revela-se uma forma de conhecer
melhor o meu superego, os meus semelhantes e a mim mesmo. Seja como
for, ensina-me muito sobre a história, cultura, política, religião,
etc. Mas, sobretudo, aprendo a melhor compreender a necessidade
humana de acreditar e nutrir a esperança. De certa forma, a Bíblia
revela-se uma generosa utopia, ainda que direcionada ao post-mortem.
Bíblia de Jerusalém – Nova
edição revista e ampliada. São Paulo: Paulus, 2010. Todas as
citações são desta versão.
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